quinta-feira, 11 de julho de 2019


O homem da terra

                                                                                                  (Pro meu pai, Zezito)


O homem da terra

Foi meu pai, um sertanejo, quem me deu as primeiras aulas práticas de amor e respeito pela natureza e pelos bichos. Também foi ele, com as suas atitudes e história de vida, quem me ensinou a capacidade de adaptar-se a situações adversas, típicas do sertão nordestino nos anos 1960 e 1970: pobreza, exclusão social, estiagens...
Ele tinha muitas virtudes:  amor à natureza, honestidade nas interações, disciplina no uso do tempo.... Mas tinha lá as suas rudezas e sua didática sertaneja para educar os filhos. Lia quase nada; fazia umas continhas. Não era avesso à escola, mas ao contrário de minha mãe que queria ver os filhos todos estudando, ele preferia ver os filhos com enxadas, foices e machados lidando com a terra, com os bichos. Afinal, para ele, ler e escrever algo já era o suficiente. Os filhos mais velhos já sabiam ler textos simples, fazer continhas.
Ela sempre acordava cedo, pelas quatro horas da manhã: o banho, o café, o trabalho, cuidar dos bichos.  Não largou esse hábito mesmo quando já velho. Acordar cedo era uma de suas virtudes. Isso justificava sua difamação à preguiça. Era um problema para nós, crianças: o barulho cotidiano no “meio da noite”; as reclamações àqueles de nós que insistíamos em dormir depois das seis horas.
— Acordem!  Os passarinhos não devem nada a ninguém e já estão voando.
Repetia esse mantra quase cotidianamente.
Acordávamos subitamente. Mas logo voltávamos a dormir, aconchegados pela rede, até que ouvíamos mais forte, dessa vez agitando os punhos de nossas redes: — Acordem!
A tensão em saber que uma terceira chamada, mais brusca e definitiva, logo viria; o sol espalhando sua claridade incontrolável que entrava por todas as portas e janelas já abertas e as responsabilidades que já tínhamos, nos obrigavam a abandonar a rede.
Andávamos por aquele sertão longas caminhadas para ir à escola, à bodega ou a uma pequena plantação de feijão e milho (quando era época de chuva) que meu pai tinha como meeiro em terras de conhecidos seus. Ou atividades mais próximas de casa: a pequena plantação no quintal e puxar água do subsolo com uma bomba d´água para abastecer cotidianamente os potes, para o banho e para as cabras e ovelhas, ou coletar algum alimento para uma vintena desses bichos que meu pai criava, quando escasseava severamente o pasto.
Em um daqueles dias da nossa infância, um verão escasso de água e comida para os bichos, depois do café, meu pai chamou a mim e o meu irmão.
— Peguem as varas e vão até à quixabeira com os bichos.
Era uma dessas atividades de gente grande. Eu e meu irmão talvez tivéssemos 10 e 8 anos. Alimentar os bichos era uma incumbência agradável, mas dura para crianças. Era já novembro ou dezembro. Quiçá já estivéssemos de férias da escolinha. A paisagem do sertão tornara-se seca, cinza, monótona, mais quente. Exceto as carnaubeiras (eram bastante), os raros juazeiros e quixabeiras e um pouco mais de xique-xiques e mandacarus que conservavam o verde, tudo era árido, quase sem vida. Uma paisagem ensolarada, rala, escassa de alimento.
Sabíamos o caminho. As cabras e as ovelhas também. Caminhamos puxando as varas que deixavam riscos no chão, seguidos por uma fila de caprinos e ovinos. Às vezes eu parava e apreciava a fila de bichos serpenteando, ditados pelo nosso ritmo, seguindo os riscos das varas. Sentia-me importante por fazer aquela atividade, embora um pouco forte para uma criança.
Às vezes eu me perguntava: — As cabras e as ovelhas gostam de mim por levá-las para comer? Sentia que sim.
— Nosso pai se sentiria orgulhoso de nós por fazermos aquela atividade dura e bonita? Ele jamais nos disse. Porém, sentia que sim.
Eu amava esses bichos domésticos. Tínhamos ainda as galinhas, o cachorro e o gato. Mas sabia que as cabras e as ovelhas necessitavam mais de nosso cuidado no temo de estio. Eu observava muitas virtudes nelas: a calma e a delicadeza das ovelhas; a coragem e o bom humor das cabras. Imaginação de criança!
Bem, tínhamos outras formas de saciar a fome dos bichos: coletar carnaúbas, ramos do jucazeiro (outra árvore que se conservava verde no meio da caatinga), e galhos de mandacaru e xique-xique. Essas atividades mais exigentes, pois exigia ferramentas como foices, facões e machados, fazíamos como coadjuvantes do nosso pai.
Ele, sempre exigente. Queria que fôssemos um sertanejo como ele. Eu, não falava para ele, mas já havia feito a minha opção pela escola, pelos livros, queria ser professor...
Ele não tinha essa experiência. Estudara quase nada.  Seus valores eram o do cultivo da terra, do cuidar dos bichos, do trabalho duro e honesto, do ensinar pelo seu exemplo.
Sim, ele ensinou pelo exemplo. Foi um grande educador.
Suas atitudes, exigências, rudezas nos deram as primeiras lições de honestidade, esperança e coragem. Sua relação com a terra, com os bichos, o conhecimento acurado da fauna e flora sertanejas, sua criatividade para conviver com a seca e com a chuva, deram-nos lições de amor, de respeito, de cuidado e de gratidão pela natureza.
Nosso pai, que nunca estudara em uma escola, foi nosso primeiro professor!