O homem da
terra
(Pro meu pai, Zezito)
O homem da terra
Foi meu pai, um sertanejo, quem me deu as
primeiras aulas práticas de amor e respeito pela natureza e pelos bichos.
Também foi ele, com as suas atitudes e história de vida, quem me ensinou a
capacidade de adaptar-se a situações adversas, típicas do sertão nordestino nos
anos 1960 e 1970: pobreza, exclusão social, estiagens...
Ele tinha muitas virtudes: amor à natureza, honestidade nas interações,
disciplina no uso do tempo.... Mas tinha lá as suas rudezas e sua didática
sertaneja para educar os filhos. Lia quase nada; fazia umas continhas. Não era
avesso à escola, mas ao contrário de minha mãe que queria ver os filhos todos
estudando, ele preferia ver os filhos com enxadas, foices e machados lidando
com a terra, com os bichos. Afinal, para ele, ler e escrever algo já era o
suficiente. Os filhos mais velhos já sabiam ler textos simples, fazer
continhas.
Ela sempre acordava cedo, pelas quatro horas da
manhã: o banho, o café, o trabalho, cuidar dos bichos. Não largou esse hábito mesmo quando já velho.
Acordar cedo era uma de suas virtudes. Isso justificava sua difamação à
preguiça. Era um problema para nós, crianças: o barulho cotidiano no “meio da
noite”; as reclamações àqueles de nós que insistíamos em dormir depois das seis
horas.
— Acordem!
Os passarinhos não devem nada a ninguém e já estão voando.
Repetia esse mantra quase cotidianamente.
Acordávamos subitamente. Mas logo voltávamos a
dormir, aconchegados pela rede, até que ouvíamos mais forte, dessa vez agitando
os punhos de nossas redes: — Acordem!
A tensão em saber que uma terceira chamada, mais
brusca e definitiva, logo viria; o sol espalhando sua claridade incontrolável
que entrava por todas as portas e janelas já abertas e as responsabilidades que
já tínhamos, nos obrigavam a abandonar a rede.
Andávamos por aquele sertão longas caminhadas
para ir à escola, à bodega ou a uma pequena plantação de feijão e milho (quando
era época de chuva) que meu pai tinha como meeiro em terras de conhecidos seus.
Ou atividades mais próximas de casa: a pequena plantação no quintal e puxar
água do subsolo com uma bomba d´água para abastecer cotidianamente os potes,
para o banho e para as cabras e ovelhas, ou coletar algum alimento para uma
vintena desses bichos que meu pai criava, quando escasseava severamente o
pasto.
Em um daqueles dias da nossa infância, um verão
escasso de água e comida para os bichos, depois do café, meu pai chamou a mim e
o meu irmão.
— Peguem as varas e vão até à quixabeira com os
bichos.
Era uma dessas atividades de gente grande. Eu e
meu irmão talvez tivéssemos 10 e 8 anos. Alimentar os bichos era uma
incumbência agradável, mas dura para crianças. Era já novembro ou dezembro.
Quiçá já estivéssemos de férias da escolinha. A paisagem do sertão tornara-se
seca, cinza, monótona, mais quente. Exceto as carnaubeiras (eram bastante), os
raros juazeiros e quixabeiras e um pouco mais de xique-xiques e mandacarus que
conservavam o verde, tudo era árido, quase sem vida. Uma paisagem ensolarada,
rala, escassa de alimento.
Sabíamos o caminho. As cabras e as ovelhas
também. Caminhamos puxando as varas que deixavam riscos no chão, seguidos por
uma fila de caprinos e ovinos. Às vezes eu parava e apreciava a fila de bichos
serpenteando, ditados pelo nosso ritmo, seguindo os riscos das varas. Sentia-me
importante por fazer aquela atividade, embora um pouco forte para uma criança.
Às vezes eu me perguntava: — As cabras e as
ovelhas gostam de mim por levá-las para comer? Sentia que sim.
— Nosso pai se sentiria orgulhoso de nós por
fazermos aquela atividade dura e bonita? Ele jamais nos disse. Porém, sentia
que sim.
Eu amava esses bichos domésticos. Tínhamos ainda
as galinhas, o cachorro e o gato. Mas sabia que as cabras e as ovelhas
necessitavam mais de nosso cuidado no temo de estio. Eu observava muitas
virtudes nelas: a calma e a delicadeza das ovelhas; a coragem e o bom humor das
cabras. Imaginação de criança!
Bem, tínhamos outras formas de saciar a fome dos
bichos: coletar carnaúbas, ramos do jucazeiro (outra árvore que se conservava
verde no meio da caatinga), e galhos de mandacaru e xique-xique. Essas
atividades mais exigentes, pois exigia ferramentas como foices, facões e
machados, fazíamos como coadjuvantes do nosso pai.
Ele, sempre exigente. Queria que fôssemos um
sertanejo como ele. Eu, não falava para ele, mas já havia feito a minha opção
pela escola, pelos livros, queria ser professor...
Ele não tinha essa experiência. Estudara quase
nada. Seus valores eram o do cultivo da
terra, do cuidar dos bichos, do trabalho duro e honesto, do ensinar pelo seu
exemplo.
Sim, ele ensinou pelo exemplo. Foi um grande
educador.
Suas atitudes, exigências, rudezas nos deram as
primeiras lições de honestidade, esperança e coragem. Sua relação com a terra,
com os bichos, o conhecimento acurado da fauna e flora sertanejas, sua
criatividade para conviver com a seca e com a chuva, deram-nos lições de amor,
de respeito, de cuidado e de gratidão pela natureza.
Nosso
pai, que nunca estudara em uma escola, foi nosso primeiro professor!